A Palavra de Deus também é resposta social
Meu caro
Bispo, D. António Marcelino
Permita-me
que “deturpe” o contexto das suas palavras no seu artigo “Descoberta
diária da palavra de Deus”, publicado na edição do dia 3 de outubro do
Correio do Vouga, para me referir ao cuidado que acho necessário e importante
que a Igreja, nomeadamente o seu episcopado, tenha na forma como comunica e
aborda a realidade social e económica actual que o país atravessa.
A Palavra,
como refere, é, de facto, relevante na essência eucarística, ao ponto do
Concílio Vaticano II lhe ter dado outra dimensão e expressividade, alargando o
seu alcance e acesso aos crentes e reforçando a importância da formação
clerical nesta área. Até porque, desta forma, a mensagem evangelizadora de
Cristo teria muito mais impacto na vida da Igreja, das comunidades, da família
e, individualmente, em cada um de nós. E quão importante é para a missão da
Igreja lembrar que Cristo libertador, por vontade de Deus Pai que “transformou”
o verbo em carne, se sentou à mesa com os pecadores, curou os doentes,
alimentou os mais pobres. Assim como hoje ainda é, felizmente, o essencial da
pastoral social da Igreja: as Misericórdias, a Cáritas, as Conferências
Vicentinas, as inúmeras IPSSs, por exemplo, o papel da “nossa” Florinhas do
Vouga.
O Papa Bento
XVI, no final do passado mês (ainda há uma semana), na sua oração do
Angelus alertava para a necessidade da “riqueza ser
usada para o bem comum, numa perspectiva solidária”, a propósito da guerra civil
no Congo. É indiscutível que as palavras proferidas pro Sua Santidade possam
ser, obviamente, alargadas a todas as circunstâncias onde a economia prevalece
sobre o ser humano e a sua dignidade.
Concretamente em Portugal, esta é uma altura em que a Igreja
neste “tempo e momento concreto, deve anunciar a justiça, a solidariedade (…),
sobretudo, numa atenção muito grande e aos mais desfavorecidos, procurando
levar a todos a mensagem de Jesus Cristo” (a tal importância da Palavra, como o
meu caro Bispo refere no seu artigo desta semana) usando as interessante
palavras do Bispo de Viseu, D. Ilídio Leandro, nas celebrações do seu 6º aniversário
da ordenação episcopal (22 de julho 2012).
Mantendo a dúvida que persiste quanto à realidade e ao
significado político da Igreja Social (Monólogos
com o meu Bispo - na fé e na vida (3)) não deixa de ser relevante e
de suprema importância o papel social desenvolvido pela Igreja neste contexto
de crise que o país atravessa. Já assim o era noutras circunstâncias, muito
mais relevante se torna agora. Basta estarmos atentos aos apelos e mensagens,
por exemplo, do Presidente da Cáritas Portuguesa, Eugénio da Fonseca (“Cáritas
teme ruptura na ajuda aos mais carenciados”) ou do Director da Pastoral
Sócio-caritativa do Patriarcado de Lisboa, Cónego Francisco Crespo ("Se as IPSS
da Igreja fechassem portas por um dia o país parava").
Por isso, meu caro D. António Marcelino, é com alguma
estranheza que o cuidado com a Palavra, enquanto suporte da missão evangelizador
da Igreja, não seja o mesmo cuidado que a Igreja, e os seus responsáveis, devam
ter nas questões sociais (e “mundanas”). Daí que não compreenda que o Cardeal
Patriarca, D. José Policarpo tenha afirmado, em entrevista à Renascença, que “os
portugueses são em parte responsáveis pelo que se está a passar, porque têm um
conceito de vida em comunidade em que o Estado tem obrigação de tudo. Pedem-lhe
tudo”.
Primeiro porque é desresponsabilizar o Estado do seu papel
social, do cuidado que deve ter com a Segurança Social, com o emprego, com a
saúde, a educação, a justiça, com a água e os transportes. Dizer que isto não é
a obrigação do Estado é reduzir a responsabilidade do mesmo apenas ao controlo,
à fiscalização e à regulação do país (o que no mínimo é perigoso). Por outro
lado, não são os portugueses que, de forma despesista, vão esbanjando os
dinheiros públicos, quando, na maioria dos casos, nem sabem para onde vai os
impostos que pagam.
Mas o mais inquietante é que as palavras de D. José
Policarpo têm, perigosamente, um outro verso da medalha: o virar o feitiço
contra o feiticeiro.
Se há instituição, entidade, que mais benefícios tem tido,
mais privilégios tem tido, do Estado é a Igreja Católica. Repare que na recente
avaliação das Fundações não há uma única de cariz religioso. Enquanto são
exigidos, mês após mês, sacrifícios incompreensíveis e inaceitáveis aos cidadãos
(ainda esta semana, o ministro das Finanças anunciou mais um agravamento da
carga fiscal) a Igreja continua a beneficiar de regalias fiscais, por exemplo,
em sede de IRC e IVA.
É evidente que o papel que a Igreja e as suas instituições têm
tido na substituição do Estado no papel social no país tem sido notório e uma “tábua”
de salvação para muitos portugueses (como se sabe dos mais variados ‘estratos
sociais’ e qualificações). Mas também é certo que a Igreja e muitas
Instituições têm sido privilegiadas na sua relação com o Estado. Daí que muitos
se interroguem, tal como o Papa Bento XVI, que a riqueza (que é muita) da Igreja,
nestes tempos difíceis deveria ser colocada ao serviço das comunidades e dos
povos.
Assim, como é difícil perceber, nos dias de hoje, que seja
construída uma Igreja, com fundos particulares é certo, em Viana do Castelo que
custe 3 milhões de euros. Será que a campanha que foi usada para a angariação
dos fundos para a construção da igreja teria o mesmo sucesso se fosse usada no
âmbito social e para ajuda aos mais carenciados? Tenho dúvidas, para não lhe
dizer já que não.
E não me parece que seja esta a Igreja de Cristo, a que
vivemos domingo após domingo, a que está na nossa mesinha de cabeceira, a que
desfolhamos na Palavra de Deus, tão importante para o alicerce dessa mesma
Igreja.
Por Cristo, com Cristo e em Cristo.
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