domingo, 17 de novembro de 2013

"Epístola" de um crente ao seu Bispo (4)

Porque a vida também se lê…
Caro D. António Francisco
Tal como referi na minha terceira “epístola” e aproveitando o facto de se ter realizado, esta semana, a assembleia plenária da Conferência Episcopal Portuguesa, é altura para falar sobre o Documento Preparatório da III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos: “Desafios Pastorais da Família no contexto da Evangelização”. Não sei se conseguirei ser suficientemente curto, face à complexidade do tema, mas vou tentar.
Não surpreende (a não ser aos mais cépticos e distraídos) esta disposição do Papa Francisco para ouvir a Igreja e os Movimentos antes da realização dos Sínodos dos Bispos, em 2104 e 2015. Se há característica ímpar no Papa Francisco é a coerência dos seus actos. Desde que foi eleito sempre afirmou que «deseja dotar a Igreja Católica de uma “organização horizontal”, além da tradicional hierarquia vertical», já que a considera demasiado “vaticanocêntrica”. Não é, portanto, de estranhar que o Papa tenha enviado às comunidades este documento preparatório. Não é uma inovação, nem algo de novo, sempre que há um sínodo, mas, desta vez, é notória a atenção que a sociedade (crente ou não) tem dispensado ao documento. Até porque em julho deste ano o Papa Francisco tinha já lançado o desafio aos católicos – “Papa Francisco diz que católicos não devem temer reforma em estruturas da Igreja”, muito para além da polémica em torno do Banco do Vaticano ou da reforma da administração do Vaticano.
O Documento e o respectivo questionário não irão, por si só, alterar a doutrina dogmática da Igreja, nem os fundamentos canónicos existentes. E, apesar de todo o carisma deste Papa (inigualável após João XXIII) e duma clara mudança na visão da missão evangelizadora da Igreja, duvido que o Papa Francisco promova alterações ao catecismo católico vigente no próximo Sínodo dos Bispos. Mas há que louvar a atitude e a disponibilidade para ouvir as comunidades, as paróquias, os crentes, permitindo um claro alargamento de participação. Irão surgir, face à complexidade e polémica de algumas temáticas relacionadas com a família, pressões (lobys) de vários lados, com diferentes convicções e opiniões. Promover o debate e a reflexão conjunta só beneficiará o trabalho do Sínodo e melhorará a imagem da Igreja. Mas a questão poderá ser outra: estará a Igreja (desde a Cúria, ao Clero e aos fiéis) preparada para esse debate? Tomemos como ponto de partida esta afirmação do Papa Francisco, em Maio deste ano, a propósito da recusa de um pároco em baptizar a filha de uma mãe solteira: “Igreja não deve estar fechada aos pecadores”. Na homília numa Eucaristia celebrada na residência, em Santa Marta, o Papa Francisco, aludindo ao acontecimento, diria mais: “Isto não é zelo, isto é distância de Deus. Quando fazemos este caminho com esta atitude não estamos a ajudar o povo de Deus”, acrescentando que “Jesus instituiu sete sacramentos e, com este tipo de atitude, estamos a criar um oitavo, o sacramento da alfândega pastoral”.
Os desafios que a sociedade apresenta são, hoje, inúmeros e coloca a Igreja perante a necessidade urgente de encontrar novas respostas: a tipologia familiar (patriarcal, matriarcal, monoparental, homossexual); a sexualidade; a adopção; o aborto; o divórcio; o ‘recasamento’; os efeitos da emigração; a falta de emprego e a saída tardia (e o casamento tardio) dos filhos de casa dos pais; o papel dos avós; a realidade económica (desemprego, horários laborais, duplicação de empregos para fazer face às dificuldades financeiras domésticas); a igualdade de género (muito para além da abordagem ideológica que a Conferência Episcopal fez na semana passada); o papel da mulher na Igreja e na sociedade (incluindo a família); … . Muito para além da questão dogmática ou doutrinal. Ou, se preferirmos, também para além da questão dogmática ou doutrinal.
Caro Bispo D. António Francisco, pessoalmente, mais do que reconhecer ou definir o preceito do “pecado”, a Igreja deve repensar a forma como acolhe, inclui (em vez de excluir e rotular) e perdoa (por Cristo) os que pensam diferente, agem diferente, optam diferente, mas não se desviam de Deus ou caminham com e para Ele. Deve redefinir a forma como exclui (e remete para os últimos bancos das igrejas, capelas e catedrais, ou, simples e friamente, fecha as suas portas) os pecadores, os ‘rotulados’, os ‘diferentes’. Porque não pode um divorciado ou recasado comungar? Porque não pode uma mãe solteira baptizar o seu filho? Porque não pode um casal homossexual que adoptou, por amor, uma criança pretender que a mesma faça parte da comunidade cristã, baptizando-a, levando-a à catequese, possibilitando que cresça em Cristo (quantas vezes num ambiente familiar mais harmoniosos, pacífico, tolerante, com mais amor, que no caso de muitas famílias ‘normais’ que até vão à missa todos os domingos)? Que direito temos nós e tem a Igreja de julgar (substituindo Deus) uma mulher vítima de violência doméstica e que se divorciou, ou uma mulher vítima de violação e que abortou? Por acaso Jesus não se sentava à mesa com todos eles? Não era com eles que Jesus percorria todos os caminhos da Galileia e da Judeia?
D. António Francisco… Deus, a que tantas vezes nos referimos com Deus do Amor, teve, no acto da Criação, a maior prova de amor para com aqueles que criou à sua imagem e semelhança: a concessão da liberdade de opção de vida.
Na recente entrevista divulgada por várias revistas Jesuítas (entre as quais a portuguesa ‘Broteria’) o Papa Francisco critica o “moralismo” e o “legalismo” que dominam a Igreja, em vez desta se preocupar com colocar no centro da sua acção o Evangelho, sem andar obcecada com a homossexualidade, o divórcio e o aborto.
“Meu” caro Bispo D. António Francisco, a Igreja do sec. XXI não pode estar, como refere o Santo Padre, “amarrada” à sua história, porque a própria história da humanidade não é estanque mas sim dinâmica.
No ano em que celebra o cinquentenário do Concílio Vaticano II volto a formular a minha opinião, aliás por algumas vezes partilhada com o D. António Marcelino (principalmente aquando dos textos em que abordou o documento conciliar): o Concílio Vaticano II tem 50 anos, muito ficou por fazer e aplicar (por culpa da própria Igreja clerical e 'curiana’) e entretanto o mundo não deixou de “pular e avançar”.
Esta poderá ser a altura da Igreja se reformar, repensar a sua visão sobre o mundo e o Homem, aproveitar uma excelente oportunidade com este pontificado de ter um outro concílio. Repare, caro D. António Francisco, nas referências documentais que estão na introdução ao inquérito: a Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” (a Igreja no mundo actual) data de 1965 (48 anos); a Carta Encíclica “Humanae Vitae” (da Vida Humana) data de 1968 (45 anos); e até o papa João Paulo II, em 1981 (há 22 anos), na Exortação Apostólica “Familiaris Consortio” (a família cristã no mundo de hoje), já afirmava, na introdução, que a família “tem sido posta em questão pelas amplas, profundas e rápidas transformações da sociedade e da cultura”. Amplas, profundas e rápidas transformações que não pararam de “agitar” a sociedade e a vida de cada um de nós.
Na catequese semanal das audiências gerais de quarta-feira, no dia 16 de outubro, o Papa Francisco referia que “uma Igreja que se fecha no passado ou uma Igreja que se preocupa com o guardar das regras é uma Igreja que trai a própria identidade: apostólica”. Uma Igreja evangelizadora, aberta a TODOS os que procuram Deus, sempre
Por Cristo, com Cristo e em Cristo.

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