Porque a vida também se lê…
Caro D. António Francisco
Tal como referi na minha terceira “epístola” e
aproveitando o facto de se ter realizado, esta semana, a assembleia plenária da
Conferência Episcopal Portuguesa, é altura para falar sobre o Documento
Preparatório da III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos: “Desafios
Pastorais da Família no contexto da Evangelização”. Não sei se conseguirei
ser suficientemente curto, face à complexidade do tema, mas vou tentar.
Não surpreende (a não ser aos mais cépticos e
distraídos) esta disposição do Papa Francisco para ouvir a Igreja e os
Movimentos antes da realização dos Sínodos dos Bispos, em 2104 e 2015. Se há
característica ímpar no Papa Francisco é a coerência dos seus actos. Desde que
foi eleito sempre afirmou que «deseja dotar a Igreja Católica de uma
“organização horizontal”, além da tradicional hierarquia vertical», já
que a considera demasiado “vaticanocêntrica”.
Não é, portanto, de estranhar que o Papa tenha enviado às comunidades este
documento preparatório. Não é uma inovação, nem algo de novo, sempre que há um
sínodo, mas, desta vez, é notória a atenção que a sociedade (crente ou não) tem
dispensado ao documento. Até porque em julho deste ano o Papa Francisco tinha
já lançado o desafio aos católicos – “Papa
Francisco diz que católicos não devem temer reforma em estruturas da Igreja”,
muito para além da polémica em torno do Banco do Vaticano ou da reforma da
administração do Vaticano.
O Documento e o respectivo questionário não irão,
por si só, alterar a doutrina dogmática da Igreja, nem os fundamentos canónicos
existentes. E, apesar de todo o carisma deste Papa (inigualável após João
XXIII) e duma clara mudança na visão da missão evangelizadora da Igreja, duvido
que o Papa Francisco promova alterações ao catecismo católico vigente no
próximo Sínodo dos Bispos. Mas há que louvar a atitude e a disponibilidade para
ouvir as comunidades, as paróquias, os crentes, permitindo um claro alargamento
de participação. Irão surgir, face à complexidade e polémica de algumas
temáticas relacionadas com a família, pressões (lobys) de vários lados, com
diferentes convicções e opiniões. Promover o debate e a reflexão conjunta só
beneficiará o trabalho do Sínodo e melhorará a imagem da Igreja. Mas a questão
poderá ser outra: estará a Igreja (desde a Cúria, ao Clero e aos fiéis)
preparada para esse debate? Tomemos como ponto de partida esta afirmação do
Papa Francisco, em Maio deste ano, a propósito da recusa de um pároco em
baptizar a filha de uma mãe solteira: “Igreja
não deve estar fechada aos pecadores”. Na homília numa Eucaristia celebrada
na residência, em Santa Marta, o Papa Francisco, aludindo ao acontecimento,
diria mais: “Isto não é zelo, isto é
distância de Deus. Quando fazemos este caminho com esta atitude não estamos a
ajudar o povo de Deus”, acrescentando que “Jesus instituiu sete sacramentos e, com este tipo de atitude, estamos a
criar um oitavo, o sacramento da alfândega pastoral”.
Os desafios que a sociedade apresenta são, hoje,
inúmeros e coloca a Igreja perante a necessidade urgente de encontrar novas
respostas: a tipologia familiar (patriarcal, matriarcal, monoparental, homossexual);
a sexualidade; a adopção; o aborto; o divórcio; o ‘recasamento’; os efeitos da emigração;
a falta de emprego e a saída tardia (e o casamento tardio) dos filhos de casa
dos pais; o papel dos avós; a realidade económica (desemprego, horários
laborais, duplicação de empregos para fazer face às dificuldades financeiras
domésticas); a igualdade de género (muito para além da abordagem ideológica que
a Conferência Episcopal fez na semana passada); o papel da mulher na Igreja e
na sociedade (incluindo a família); … . Muito para além da questão dogmática ou
doutrinal. Ou, se preferirmos, também para além da questão dogmática ou
doutrinal.
Caro Bispo D. António Francisco, pessoalmente, mais
do que reconhecer ou definir o preceito do “pecado”, a Igreja deve repensar a
forma como acolhe, inclui (em vez de excluir e rotular) e perdoa (por Cristo) os que pensam diferente,
agem diferente, optam diferente, mas não se desviam de Deus ou caminham com e para
Ele. Deve redefinir a forma como exclui (e remete para os últimos bancos das
igrejas, capelas e catedrais, ou, simples e friamente, fecha as suas portas) os
pecadores, os ‘rotulados’, os ‘diferentes’. Porque não pode um divorciado ou
recasado comungar? Porque não pode uma mãe solteira baptizar o seu filho?
Porque não pode um casal homossexual que adoptou, por amor, uma criança
pretender que a mesma faça parte da comunidade cristã, baptizando-a, levando-a
à catequese, possibilitando que cresça em Cristo (quantas vezes num ambiente
familiar mais harmoniosos, pacífico, tolerante, com mais amor, que no caso de
muitas famílias ‘normais’ que até vão à missa todos os domingos)? Que direito
temos nós e tem a Igreja de julgar (substituindo Deus) uma mulher vítima de
violência doméstica e que se divorciou, ou uma mulher vítima de violação e que
abortou? Por acaso Jesus não se sentava à mesa com todos eles? Não era com eles
que Jesus percorria todos os caminhos da Galileia e da Judeia?
D. António Francisco… Deus, a que tantas vezes nos
referimos com Deus do Amor, teve, no acto da Criação, a maior prova de amor
para com aqueles que criou à sua imagem e semelhança: a concessão da liberdade
de opção de vida.
Na recente entrevista divulgada por várias revistas
Jesuítas (entre as quais a portuguesa ‘Broteria’) o Papa Francisco critica o “moralismo”
e o “legalismo” que dominam a Igreja, em vez desta se preocupar com colocar no centro
da sua acção o Evangelho, sem andar obcecada com a homossexualidade, o divórcio
e o aborto.
“Meu” caro Bispo D. António Francisco, a Igreja do
sec. XXI não pode estar, como refere o Santo Padre, “amarrada” à sua história,
porque a própria história da humanidade não é estanque mas sim dinâmica.
No ano em que celebra o cinquentenário do Concílio
Vaticano II volto a formular a minha opinião, aliás por algumas vezes
partilhada com o D. António Marcelino (principalmente aquando dos textos em que
abordou o documento conciliar): o Concílio Vaticano II tem 50 anos, muito ficou
por fazer e aplicar (por culpa da própria Igreja clerical e 'curiana’) e entretanto o mundo não
deixou de “pular e avançar”.
Esta poderá ser a altura da Igreja se reformar,
repensar a sua visão sobre o mundo e o Homem, aproveitar uma excelente
oportunidade com este pontificado de ter um outro concílio. Repare, caro D.
António Francisco, nas referências documentais que estão na introdução ao
inquérito: a Constituição Pastoral “Gaudium
et Spes” (a Igreja no mundo actual)
data de 1965 (48 anos); a Carta Encíclica “Humanae
Vitae” (da Vida Humana) data de 1968
(45 anos); e até o papa João Paulo II, em 1981 (há 22 anos), na Exortação Apostólica
“Familiaris
Consortio” (a família cristã no mundo
de hoje), já afirmava, na introdução, que a família “tem sido posta em questão pelas amplas, profundas e rápidas
transformações da sociedade e da cultura”. Amplas, profundas e rápidas
transformações que não pararam de “agitar” a sociedade e a vida de cada um de
nós.
Na catequese semanal das audiências gerais de
quarta-feira, no dia 16 de outubro, o Papa Francisco referia que “uma Igreja que se fecha no passado ou uma
Igreja que se preocupa com o guardar das regras é uma Igreja que trai a própria
identidade: apostólica”. Uma Igreja evangelizadora, aberta a TODOS os que
procuram Deus, sempre
Por
Cristo, com Cristo e em Cristo.
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