Porque a vida também se lê…
Caro D. António Francisco
Saudações fraternas em Cristo Ressuscitado.
Em fevereiro, na sexta “epístola”, a propósito do
anúncio público da sua ida para a Diocese do Porto, escrevi, na parte final da
carta: “não perdeu um “crente” que continuará a olhar (mesmo que mais longe)
para o Seu Bispo”. Prometido é devido.
Este é o momento do calendário litúrgico mais
expressivo e relevante na Igreja. Não menosprezando a importância do Advento e
do Natal, é a Morte a Ressurreição de Jesus Cristo que simbolizam o paradigma da
fé. Aliás, é a própria Eucaristia que nos lembra isso mesmo após a Consagração:
“Eis o Mistério da Fé”. Se bem que o uso litúrgico da palavra “mistério” se me
afigure como um paradoxo, já que a morte e ressurreição são as verdades e as
realidades da nossa fé. São, simultaneamente, o fim e o princípio. O fim da
missão de Jesus entre os homens (o processo de evangelização e salvação) e o
fim da nossa vida terrena; e o princípio de uma “nova vida” em espírito (e com
o Espírito Santo), com Deus (sentado à direita do Pai, no reino que não terá
fim), com a Igreja (alicerçada nos primeiros apóstolos e nas primeiras
comunidades). Mas a morte e a ressurreição são também o dogma da libertação e
da salvação. Neste sentido, mais paradoxo se afigura a forma como a maioria
(quase a totalidade) dos católicos vive esta quadra quaresmal e pascal. A
Quaresma e a Páscoa - com a Paixão e a Ressurreição, o sentido comunitário da
Eucaristia e a edificação, sobre Pedro, da Igreja - são motivos mais que
suficientes para celebrarmos, com alegria, esperança e sentido de mudança, a
liberdade e a salvação em Cristo. São razões mais que suficientes para, mesmo
ao percorrermos o Calvário e vermos Cristo pregado numa cruz, nos regozijarmos,
nos alegrarmos, deixarmos de viver este período com um cinzentismo
injustificável, porque na libertação (através da Ressurreição) sabemos que
Cristo estará sempre ao nosso lado, seja qual for o nosso “Caminho de Emaús”.
Bem sei, caro D. António Francisco, que, apesar
desta alegria na libertação e salvação, o caminho (que se faz caminhando) não é
fácil, não é direito, não é plano. Tem uma “cruz” pesada. E a dos últimos anos,
para um significativo número de portugueses, tem sido bastante pesada.
Permita-me, D. António Francisco, recordar um dos pontos altos da sua mensagem
à Diocese do Porto: o combate urgente à pobreza, a solidariedade para com os
mais necessitados. Sem demoras. Porque é esta pobreza; o desemprego; a
emigração; as dificuldades porque passam milhares de famílias, as crianças e os
idosos; a perda da dignidade humana; a degradação do tecido social; a
desvalorização do valor e do papel do trabalho; são estas realidades que vão
carregando a cruz de cada Quaresma e Páscoa que se vivem e se avizinham.
Daí que relembre, mais uma vez, quer a sua homilia
na sua chegada à Diocese do Porto, quer na entrevista que concedeu à RTP2 e
conduzida pelo camarada (no sentido profissional) João Fernando Ramos: os
católicos têm o dever acrescido de se envolverem e responsabilizarem na
sociedade e na política. Aos diocesanos do Porto, o “meu” Bispo exortou a serem
mensageiros e protagonistas das Bem-Aventuranças, porque o Evangelho, a sua
mensagem e os seus princípios, é tudo o que somos e vivemos enquanto católicos.
E se com esta certeza, mais a fé que nos emana da
libertação e salvação presentes na Morte e Ressurreição de Cristo, os católicos
fossem mais activos, mais responsáveis, mais presentes na sociedade e na
política, garantidamente teríamos um mundo mais digno, uma economia mais
humana, uma política e governação mais sociais. Teríamos uma realidade da vida
garantidamente alicerçada nos quatro principais princípios da Doutrina Social
da Igreja: a dignidade humana, o bem comum, a subsidiariedade e a
solidariedade. E mais uma vez relembro as suas palavras, D. António Francisco,
“o Evangelho é tudo o que temos e somos”, para recordar os exemplos do
Evangelho que ilustram a Doutrina Social da Igreja referidos por D. António
Clemente, no livro “Diálogo em tempo de escombros”, partilhado com o jornalista
José Manuel Fernandes: a parábola do “Bom Samaritano”, do “Filho Pródigo”, dos
“Talentos”, entre outras. A razão da ausência dos católicos da vida social e
política das comunidades e do país é que confrontados com a realidade da vida e
com a Doutrina Social da Igreja (marcadamente de “esquerda”) refugiam-se no
comodismo, no alinhamento com o sistema, no não assumir a condição de católico
na sua plenitude, tal como Cristo a viveu desde as Bodas de Caná até ao
Calvário: com os pobres, os marginalizados, os excluídos, os pecadores. Tal como muitos viraram as costas, O negaram, desviaram o olhar, mostraram-se indiferentes, perderam a fé e deixaram de acreditar, desde a condenação de Cristo até à sua cruxificação, passando pelo caminho até ao Calvário.
O problema é que professamos o que não vivemos e
vivemos escondendo aquilo que, timidamente, professamos.
Pela libertação na Morte e Ressurreição.
Por
Cristo, com Cristo e em Cristo.
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